sexta-feira, 8 de março de 2013

Um 8 de março para além da luta das mulheres


Há aproximadamente seis anos, um discurso no mínimo pitoresco foi entoado da tribuna da Câmara Municipal de São Paulo. Seu autor, um antigo e bem sucedido cantor popular, conseguira se alçar ao exercício da vereança por meio dos tênues resquícios do sucesso de outrora somados a sua inusitada participação em um reality show transmitido nacionalmente e que acabou por retirá-lo das mais recônditas periferias do ostracismo.
O então ilustre vereador, de sotaque característico e extravagância nas entonações, destacou-se também por seus caricatos posicionamentos conservadores. No discurso cuja menção inicia o texto, fez uma defesa enfática, machista e sem rodeios da nefasta prática da exploração sexual de crianças e adolescentes em nosso País, serviço cuja procura por estrangeiros costuma ser bastante intensa.
Afirmou o dileto ex-parlamentar (diferentemente das últimas eleições, não conseguiu se reeleger no pleito de 2012) que o visitante que vem ao país atrás de sexo não pode ser considerado criminoso: “ninguém nega a beleza da mulher brasileira. Hoje as meninas de 16 anos botam silicone, ficam popozudas, põem uma saia curta e provocam. Aí vem o cara, se encanta, vai ao motel, transa e vai preso? Ninguém foi lá à força. A moça tem consciência do que faz”, declarou. “O cara (turista) não sabe por que ela está lá. Ele não é criminoso, tem bom gosto.” Ainda, para o ex-edil da capital paulistana, há “demagogia” e “frescura” nos que divergem da sua tese.
Nesse contexto de reivindicação e luta contra os grilhões culturais e socioeconômicos que solapam um tratamento verdadeiramente digno, respeitoso e igualitário às mulheres do nosso País tanto por parte do Estado como da própria sociedade, creio que seja pertinente fazer a seguinte indagação: o que o machismo, a homofobia e a violação – sexual ou não - dos direitos das crianças e adolescentes tem em comum? Quase tudo.

Em uma sociedade machista, preconceituosa, classista, heteronormativa e adultocêntrica como a nossa, o contexto de violência contra mulheres, homossexuais e crianças costuma se entrelaçar de maneira bastante íntima, visto que brotam do mesmo bloco homogêneo de ideias e concepções caracterizadas principalmente pelo mais tacanho conservadorismo que ainda alça o sujeito branco, heterossexual e adulto ao status de super-cidadão, dotado de privilégios e direitos alijados de todos aqueles que divergem deste padrão.

O sujeito machista, cuja concepção de estrutura familiar ainda se funda na centralizadora e hierarquizada lógica patriarcal de irrestrita submissão da mulher ao homem, compartilha, em regra, da bolorenta opinião de que o conceito de família é e sempre será fundamentado no estanque modelo de homem, mulher e filhos, não havendo qualquer margem para a diversidade.

Acontece que, com a crescente complexidade das relações intersubjetivas e o reconhecimento da sociedade enquanto plural e consequentemente submetida às constantes transformações dos conceitos e valores que a arraigam, o vínculo sanguíneo passou a ser secundário na caracterização da família, que hoje abarca um grande número de espécies que, por sua vez, independem de qualquer grau de parentesco.   

Com efeito, a tônica caracterizadora de um núcleo familiar passa necessariamente pelas relações de afeto entre seus membros, elemento nuclear na definição da família, independentemente da existência de filhos, laços sanguíneos, orientação sexual bem como da existência de relações carnais entre seus membros.

O tradicional “chefe de família”, reproduzido na figura paterna que, de postura centralizadora e militaresca, provem sozinho o lar e disciplina a esposa dona-de-casa e os filhos mantendo-os em permanente estado de submissão, é figura que caminha fatalmente para a extinção. As famílias em geral estão, cada vez mais, lançando mão desse modelo antiquado e hierarquizado de relações intrafamiliares, reconhecendo, além da sua falência, o afeto como único e indispensável atributo para a conceituação da família contemporânea.

Tais conquistas são uma clara consequência da crescente emancipação política, socioeconômica e sexual das mulheres, cientes da histórica opressão que lhes cai aos ombros e, ao mesmo tempo, da força transformadora que possuem enquanto coletividade. Está aí a bem sucedida iniciativa da Marcha das Vadias que, em nível internacional, questiona os paradigmas e convenções sociais que diariamente matam e oprimem mulheres de todo o planeta.

No que diz respeito à violência contra mulheres, esta nasce muitas vezes da relutante insistência dos seus companheiros em manter no seio familiar este anacrônico e ultrapassado modelo. Acossadas por uma cultura de vergonha, dependência e submissão, as vítimas tendem a não possuir estímulo e condições para denunciar e assim confrontar o contexto de violação no qual estão inseridas. Para o agressor, prenhe de arcaicas concepções que o fazem se arrogar na  deplorável autoridade do chefe de família, a independência e a autonomia da mulher passa a ser confundida com insubordinação, e daí para as vias de fato é muito, muito pouco.

A incapacidade de compreender que o direito de formar núcleos familiares também se estende a homossexuais, por exemplo, parte do mesmo equivocado entendimento de que desde as primitivas comunidades pré-hominídeas a definição de família continua a mesma. E se o incômodo com a sexualidade alheia é uma marca da nossa sociedade, a formação de famílias homoafetivas ainda é vista por muitos como uma transgressão moral em grau máximo que deve ser combatida com discriminação, desrespeito e violência, seja física ou moral.

Se o elo entre machismo, feminicídio e homofobia é evidente, passando pela compreensão, dentre outras coisas, de que a família deve se reger pelos dogmas do feudal patriarcado heteronormativo, a ligação destes dois com a violação dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes é ainda mais intensa.

As agressões perpetradas contra mulheres e que costumam ocorrer no ambiente doméstico e familiar acabam por resvalar, física ou simbolicamente, nas crianças que estão sob a responsabilidade do casal, que passam a naturalizar este contexto agressões físicas, verbais ou psicológicas – as meninas, na condição de potenciais vítimas, oprimidas pelo ideário machista que marca a pele de suas genitoras com sucessivos hematomas (quando não são as próprias crianças que são as vitimadas), enquanto os meninos como potenciais agressores e reprodutores do discurso misógino, moralista e patriarcal que alicerça toda sorte de agressões contra mulheres.

A agressão, seja física ou simbólica, passa assim a interferir no desenvolvimento personalidade daquelas crianças e adolescentes, ainda em formação biopsicológica, mesmo quando “apenas” presenciam a violência.

Ainda, a situação das crianças sob o ponto de vista da autodeterminação é mais delicada. Demais setores e segmentos da sociedade podem se aglutinar na luta política pelo reconhecimento e realização de direitos. Mas e as crianças e adolescentes? Possuem essa autonomia e capacidade de organização? Por óbvio não, o que as submete ainda mais às prevalentes e deformadoras concepções culturais adultocêntricas que, com requintes de um machismo sádico, deram ensejo a julgado do Superior Tribunal de Justiça que absolveu sujeito que manteve relações sexuais com garotas de 14 anos de idade em situação de exploração sexual por entender que as mesmas “sabiam o que estavam fazendo”.

Direitos, políticas públicas e ações afirmativas voltadas às crianças e adolescentes costumam ser marcadas tanto pelos mantras do adultocentrismo como pela cartilha da heteronormatividade, imperantes em uma sociedade que insiste em tratá-las como meros adultos-mirins enquanto frustra e impede o recorte de gênero como elemento do processo educacional de formação dos nossos jovens. Um verdadeiro favor à manutenção de uma miríade de dogmas sexistas formalmente sedimentados desde a mais tenra idade na cabeça das pessoas.

O tratamento por parte do Estado às crianças e adolescentes, assim, acaba por adotar essa perspectiva unilateral como regra, resgatando a ultrapassada e lamentável ideologia do – de triste memória - Código de Menores diretamente dos porões das quinquilharias legislativas que, em tempo revogadas, possuem valor unicamente histórico. Revivendo os parâmetros menoristas de tratamento dispensado às crianças e adolescentes anteriores à vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, acabam por regredi-los à antiga e lamentável condição de objetos, não de sujeitos de direito.

Em ritmo aquém do que gostaríamos, a cultura do desrespeito e da ignorância acima definida em algumas de suas inúmeras matizes vem sendo aos poucos desconstruída. E uma maneira de combatê-la é exatamente neutralizando os frágeis discursos que as sustentam, embebidos até o pescoço nas superficiais fontes do senso comum.

O despretensioso e muitas vezes jocoso discurso de ódio, trivial e corriqueiro, proferido nas reuniões de família, festas de aniversários e mesas de bar, é o que mais profusamente legitima as nefastas práticas neles consubstanciadas, mesmo que não seja esta a intenção direta. Confrontá-los com propriedade é dever de todos os comprometidos com a construção de uma sociedade em que a barbárie, a misoginia e o preconceito passem a ser a exceção, e não a regra.



domingo, 1 de abril de 2012

Tora-réia

       Final de tarde, sol se pondo. Cansados, pouco menos de uma dúzia de garotos estão em campo. Alguns outros aguardam resignados atrás das traves, ainda amargurando a derrota da partida anterior. O campo, de dimensões modestas, é de terra. As traves, de madeira. Uma delas sem o travessão. Não suportou um forte e certeiro chute de fora da área. Tijolos que restaram de uma construção próxima são improvisados como arquibancadas. A pelada começou aproximadamente às três da tarde, horário em que o sol está esfriando. Alguns incautos chegaram ao campo às duas horas, à revelia dos conselhos de suas mães e do dever de casa para o dia seguinte.

         Eis que acontece exatamente quando estão todos cansados, naquele momento em que não se leva mais a sério os derradeiros minutos das partidas vespertinas tal qual se levou os primeiros jogos daquela tarde; exatamente na despedida da aurora, na transição entre do dia para a noite noite, onde a luz, este natural refletor que condiciona o início e o fim das juvenis e amadoras pelejas futebolísticas, resta escassa e pouco a pouco se alastra a escuridão, formando uma penumbra que acaba por dissipar os últimos resquícios de claridade, é que se ouve um grito que dá início a um violento ritual aos olhos dos de fora, mas peculiarmente amigável aos olhos dos de dentro: o grito da Tora-réia.

         A Tora-réia – doravante Tora-reia, sem acento, em observância às normas da mais recente reforma ortográfica -, assim como o popular Cascudinho, é uma das brincadeiras mais tradicionais dos campinhos de várzea de todo o país, com variações apenas em sua nomenclatura. É a coroação de uma tarde de alegria nascida das descomprometidas partidas de futebol entre amigos onde, ao seu final, deixa-se de lado a responsabilidade e o dever de vencer para brincar com a bola de uma maneira, digamos assim, um tanto quanto pouco ortodoxa.

         As batalhas campais da Tora-reia consistem basicamente na ausência de faltas e de toda sorte de penalidades. É, por sinal, um dos raros momentos do futebol onde o gol deixa de ser o clímax do esporte bretão; a Tora-reia tem a façanha de fazer com que seus participantes sequer se importem em que direção se encontram as traves.

         Carrinhos por trás, pés-altos, tostões, calços, tesouras voadoras e entradas de sola: tudo que poderia eventualmente ser tipificado como uma autêntica tentativa de homicídio passa a ser permitido na Tora-reia. A finalidade de, com força, chutar a bola em direção aos colegas – as chamadas bombas ou tivucos – também rege o viés animalesco, sanguinário e brutal dos finais de partidas de várzea. O cidadão que tem a infelicidade de estar com a bola, se não chutá-la logo em alguém ou para longe, vira uma potencial vítima de fraturas, concussões e hematomas decorrentes de todas as refinadas técnicas enumeradas no início do parágrafo.  

         A Tora-reia tem também um sentido político. Engloba ao mesmo tempo elementos anárquicos – sem faltas, arbitragem, regras e limites – e democráticos – todos, sem exceção, viram um indiscriminado alvo de sopapos, basta estar com a bola. O caráter democrático da Tora-reia é tão evidente que, mesmo aqueles que se situavam atrás das traves, sentados nos banquinhos improvisados com tijolos e esperando a próxima partida, atendem de forma categórica o seu chamado, entrando em campo com uma voracidade homicida independentemente do fato de não estarem participando da partida na qual se iniciara a singela troca de afagos entre seus participantes.

         A denominação Tora-reia possui algumas variações terminológicas. Há lugares em que se intitula Hora da sopa, definida de forma sutilmente lacônica como Do pescoço pra baixo é canela. Há outra brincadeira chamada de Tora-bomba que, na verdade, é uma versão mais amena da Tora-reia, vez que diz respeito apenas a bombardear os companheiros, abstendo-se dos ataques físicos diretos. Desnecessário observar que a Tora-bomba é bem menos divertida.

         O melhor de tudo é o fenômeno social decorrente das aparentemente ambíguas relações entre os participantes desse evento de fim de tarde: protagonizam cenas da mais pura barbárie, do mais desvairado sadismo e da mais gritante selvageria para, logo após, saírem juntos em um espontâneo clima de companheirismo e harmonia em direção às suas residências, comentando acerca dos lances mais memoráveis do dia e dos resultados da última rodada do Brasileirão.

         A Tora-reia, é bom que fique claro, também possui efeitos colaterais. E não pensem que tais efeitos estão na forma de hematomas e luxações. Estes são diretos, esperados, ínsitos à brincadeira e tampouco temidos pelos guerreiros da bola. Aqui se trata de outras consequências, incontestavelmente mais relevantes. Por exemplo: é comum algum dos jogadores mais açodados chutar a bola para aquele terreno baldio repleto de urtigas onde já se desenvolvera uma mata indevassável; ou chutá-la para a via principal próxima ao campo por onde passam os ônibus. Daí, as chances da bola se perder meio à flora local ou ser atropelada por algum veículo são altíssimas. Também é considerável a probabilidade da pelota cair nas dependências daquele(a) vizinho(a) ranzinza, um(a) senhor(a) de idade desgostoso(a) com o fato da meninada estar brincando próximo à sua residência. Mas o mais improvável nisso tudo é que seja devolvida – sem conter golpes de faca, frise-se - mesmo com todo o suplicante lobby dos atletas e da relutância em decidir quem será o responsável por tocar a campainha para pedir a bola (aí a briga pode ser maior que a da própria Tora-reia).

         A paixão do brasileiro por futebol atinge tamanha devoção que a ausência de bola nunca fora razão para não jogar. Traves, então, são requisitos extremamente dispensáveis. Quando por diversos motivos não é permitido o uso da pelota - como nos intervalos da aula, onde, para o descontentamento dos estudantes, o professor de educação física resistia em liberá-la -, improvisa-se com qualquer objeto que ostente um coeficiente mínimo de chutabilidade: latinhas de refrigerante, tampinhas de garrafa, bolas de meia e até pedras substituem com autoridade aquela bola de couro caríssima das lojas de artigos esportivos. 

     O pátio do colégio se torna o campo, mesmo sob o inquisitório olhar de desconfiança e desaprovação dos bedéis e coordenadores, incisivos em suas funções de censor quando a brincadeira fatalmente descamba para a inevitável Tora-reia. Incumbidos de cessar com aquele primitivismo sanguinolento, presenciam horrorizados os recíprocos bicudos nas canelas alheias e as depilações instrumentalizadas por desgastados solados de borracha. Daí, os alunos envolvidos são levados para a coordenação, pais são notificados do acontecido e os estudantes subversivos da ordem e da moralidade pedagógica recebem sanções tanto em suas casas como na escola - insuficientes, porém, para pôr rédeas em seus ímpetos futebolísticos e, consequentemente, na sempre irreprimível Tora-reia. No dia seguinte estarão lá, jogando novamente, ao arrepio das advertências e das sanções dadas pelos seus responsáveis.

         As origens e elementos semântico-terminológicos do termo Tora-reia são simples de serem visualizados. Dizem respeito sobretudo à junção de dois verbos sinônimos nascidos em meio à rica e coloquial linguagem popular: torar e reiar. O segundo termo ainda é alvo de polêmicas fonéticas e etimológicas. Há quem o pronuncie sem o i, pronunciando rear ao invés de reiar. É verbo do qual derivam o substantivo reiada e a famigerada expressão reiou-se, esta última sendo empregada na maioria das vezes sob a forma de interjeição, exprimindo estados emocionais de susto, admiração e surpresa. Reiou-se! Lá vem o bedel! Esconde a tampinha, rápido!

         Entreveros gramaticais, contudo, são plenamente incapazes de retirar a poesia, a inocência e o romantismo de uma brincadeira nascida nas ruas e que resiste até hoje, mesmo diante do boom imobiliário que vem levando os campinhos de várzea à extinção e da popularização e surgimento de novas alternativas tecnológicas de entretenimento entre os jovens e adolescentes de hoje em dia (não posso deixar de observar que considero a fria assepsia das redes sociais como inimiga número um da gostosa e insubstituível mistura de sangue e barro que é a Tora-reia, bem como de todas as tradicionais brincadeiras de rua, tais quais as excelentes Tô no poço, Tica-tica, Sete Pecados e Garrafão).

         Por mais contraditório que possa parecer, a Tora-reia possui lugar confortável meio às mais saudosas memórias dos outrora juvenis peladeiros vespertinos que, ao delas lembrar, sentem de forma concomitante o amargo gosto da saudade e o doce sabor da felicidade provinda daqueles momentos onde a maior preocupação que tinham eram as eventuais repreensões que sofreriam de suas mães ao chegarem em casa roxos, repletos de feridas e sem os chaboques de seus respectivos dedões.

         O melhor meio de mensurar uma infância bem vivida é pela quantidade de cicatrizes que o sujeito possui no joelho, prova indelével de que foi uma criança saudável, altiva e serelepe. Grafadas com sangue, suor e desespero materno, funcionam elas como uma espécie de registro de que aqueles que as carregam não foram criados dentro de um apartamento por suas avós, divertindo-se apenas com jogos eletrônicos, televisão e internet. Não tenham dúvidas de que parte destas cicatrizes tiveram origem exatamente nesses nostálgicos, antológicos e diários combates do pôr-do-sol.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Da necessidade efetiva de um estado laico


Churchill dizia que a democracia é o regime de governo no qual você tem a certeza de que quem bate na sua porta às 6 da manhã é o leiteiro. O regime democrático possui uma natural e inevitável ligação umbilical com o modelo republicano, juntos plasmando uma série de direitos e garantias dos cidadãos em sua dimensão individual, coletiva e difusa. A nossa democracia, semidireta e de viés representativo, congrega elementos de participação indireta por meio dos deputados, senadores e vereadores com instrumentos de participação direta da população nas decisões do Estado, como a ação popular e a iniciativa para dar início ao processo legislativo de elaboração de normas. Não existe meia-república, de modo que, para que assim seja caracterizada, devem nela estar presentes todos os seus elementos conformadores; não há, por exemplo, como conceber um regime republicano sem transparência nas ações, iniciativas, gastos e investimentos públicos por parte do Estado, mesmo que nele estejam presentes todas as suas demais características delineadoras  tais quais o pluralismo político, a titularidade popular do poder e a laicidade do Estado, da qual se tratará adiante.


O respeito à crença religiosa e a asseguração da liberdade de culto também são pilares do modelo democrático/republicano que, por sua vez, costuma dar uma proteção especial aos direitos e garantias individuais dos cidadãos por meio de mecanismos institucionais que limitam o voraz e tradicional ímpeto estatal em interferir na individualidade dos seus administrados. Da mesma forma que a liberdade de religião é uma garantia constitucional, e sendo a isonomia um dos muitos princípios das democracias republicanas, as constituições de origem liberal procuram dar o mesmo tratamento e toda e qualquer espécie de manifestação religiosa, não favorecendo e tampouco perseguindo ou marginalizando quaisquer delas. Daí surge a relevância do Estado laico como instrumento de respeito, tolerância e boa convivência tanto no que se refere às relações entre as mais diversas matrizes religiosas bem como no trato destas com as próprias entidades estatais.

Diferentemente do que algumas vozes fundamentalistas apregoam, o estado laico não nega o caleidoscópio multicultural sob o qual se funda nossa sociedade. Tampouco ignora a diversidade de credo que sob ela também se erige. O estado laico, simplesmente, reconhece a diversidade de religiões, mas não se pauta – nem deve se pautar – em dogmas religiosos para fundamentar suas decisões políticas. Tratar-se-ia, caso contrário, de uma espécie de teocracia e não de uma república, vez que lhe falta o apelo da isonomia religiosa e, principalmente, da laicidade cuja existência garante tão somente a não perseguição institucional dos credos não-oficiais além de, em consequência, diminuir a reprimenda social e institucional às religiões diversas daquela adotada pelo Estado por meio de sua Constituição.

No estado laico e democrático de direito, nada está acima da Constituição. A Bíblia, o Torá, o Corão e demais sistematizações escritas de dogmas e preceitos religiosos, numa ótica republicana, apesar de terem suas celebrações litúrgicas devidamente protegidas pelo texto constitucional, não devem prevalecer quando em confronto com a Lei Maior. Um senador da república como Magno Malta (PR-ES) que, na condição de parlamentar, afirma que a Bíblia está acima da Constituição, não faz jus à nobre função que lhe confere a nossa Carta Magna, considerando que a Bíblia serve à fé privada do cristão – e somente a ela. A crença é elemento de natureza pessoal, particular, já o Estado é - ou deveria ser - impessoal em todas as suas matizes. O pronunciamento do senador se agrava ainda mais se observarmos que dentre os deveres dos parlamentares está exatamente o de proteger a nossa Constituição que, por sua vez, atesta como indevida qualquer ação estatal fundada em dogmatismos religiosos ao não elevar credo algum ao status de oficial.

É muito comum encontrarmos as paredes das mais diversas repartições públicas ornadas com símbolos religiosos. Quando o desembargador Luiz Zveiter, ao assumir a presidência do Tribunal de Justiça do Rio da Janeiro no início de 2010, determinou a retirada dos crucifixos espalhados pelo edifício e ordenou a desativação da capela que se situava em suas dependências, representou um raro lampejo de lucidez republicana no judiciário brasileiro que, a começar pelo STF, corte maior do País, é também um inveterado adepto da ornamental iconofilia cristã. 

O problema, todavia, não é só do referido poder, mas dos prédios públicos em geral, locais onde se personifica fisicamente um estado supostamente laico. Pior ainda é quando agentes políticos lançam mão de argumentos religiosos para barrar iniciativas institucionalmente legítimas como o kit-anti-homofobia do MEC bem como para tomar medidas contra o recente reconhecimento civil da união homoafetiva pelo Supremo, conforme vem fazendo a bancada evangélica do Congresso Nacional.  Entender que os dogmas cristãos devem prevalecer ante a laicidade do Estado seria extrair toda a normatividade que possui a Lei Maior nesse sentido além de, consequentemente, dar vazão à intolerância religiosa, já considerável mesmo na vigência de um Estado laico. Assim o digam as religiões de matriz africana.

domingo, 18 de março de 2012

Natal, terra das aparências


Genial em todas as suas expressões artístico-literárias – que vão desde crônicas, poesias, livros, ensaios e roteiros para a dramaturgia -, Machado de Assis é muito mais que um ícone da literatura nacional. É a elevação inconteste da nossa produção literária aos píncaros do panteão dos grandes autores universais como Shakespeare e Camões.

 Na condição de contista, Machado, como de costume, também não desperdiçava tinta.    “O espelho” é um dos seus contos que melhor representam a desenvoltura ímpar com que emoldurava temáticas mundanas. Como bem diz o seu próprio subtítulo, trata o mesmo do “esboço de uma nova teoria da alma humana”. Seu protagonista, personagem chamado Jacobina, discorre ininterruptamente para quatro ou cinco interlocutores acerca de uma espécie de teoria bipartite da alma, segundo a qual cada indivíduo traria consigo duas almas: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro. Compara-as Jacobina às duas metades de uma laranja, colocada como representação metafísica do homem. Quem perde uma das metades – diz ele aos seus interlocutores – perde fatalmente metade da sua existência. A alma que olha para dentro seria a alma convencional, conhecida de todos, enquanto a que olha para fora pode se materializar em qualquer coisa, concreta ou abstrata, a exemplo de um livro, um ofício, um objeto, uma obra de arte ou até mesmo uma apresentação musical. Sem a segunda metade, entra o sujeito em uma crise existencial que, tão somente, torna sua vida um lamentável arremedo insípido e ardoroso por demais para ser postergado até os seus momentos finais.
                                                                         
Além da inigualável riqueza estética e metafórica, outro aspecto fascinante nos escritos de Machado é a sua atemporalidade. O conteúdo de “O espelho”, em especial, pode ser analisado sob a perspectiva de quaisquer costumes e convenções sociais de qualquer lugar do mundo, tanto sob o prisma individual como sob o coletivo. Em termos atrevidamente simplórios, poder-se-ia então questionar: onde se encontraria a alma externa do sujeito que nasce, cresce e se reproduz em nossa ensolarada esquina de continente chamada Natal?

Sabendo da supervalorização que os nossos concidadãos nutrem por um mundo de fantasias, não é difícil tirar certas conclusões a respeito. Para alguns, estar em evidência nas rodas sociais parece ser tão essencial quanto respirar. O mesmo ocorre quando o assunto é “estar bem” no que diz respeito às suas condições econômicas.  Estar confortável financeiramente, entretanto, não é o que mais importa. Mostrar a terceiros que está – mesmo que esteja na mais lamentável situação de penúria -, isso sim, é inquestionavelmente mais relevante que factualmente garantir as necessidades do lar. É exatamente nesse sentido que se costuma fazer um esforço sobre-humano em exacerbado prestígio ao status social que rege a vida de boa parte dos natalenses: troca-se de carro mesmo não estando em dia com as parcelas do financiamento do possante anterior, freqüentam-se eventos pomposos de entradas caríssimas no afã de tanger o ostracismo social e, o melhor, a ida a restaurantes caros e aos badalados bares e pubs da moda serve muito mais para se manter socialmente vivo e em evidência do que para se alimentar ou se confraternizar com os amigos. Mas há um motivo para tudo isso, afinal, abrir mão de ostentações de toda espécie levaria fatalmente ao que é considerado o pior e mais cruel dos julgamentos: especulações inconvenientes sobre a situação financeira do ilustre ausente do show de Roberto Carlos no Teatro Riachuelo ou dos jantares no Abade.

As estatísticas depõem favoravelmente à tese de que, de fato, satisfaz a lascívia do natalense mostrar a terceiros que é algo que está estratosfericamente longe de ser. Aqui, por exemplo, segundo o jornalista Mario Barreto em entrevista à revista Palumbo, compra-se mais Land Rovers que em Salvador, mesmo esta sendo a maior capital do nordeste – além de, naturalmente, ser uma cidade consideravelmente mais rica que Natal. No mesmo passo, os índices de inadimplência em nossa cidade quanto ao financiamento de veículos possui o mesmo viés estratosférico acima relatado. “Viver bem” – esta infame expressão que em nossas terras é deturpada pela eiva dissimulada do “querer ser”- às margens do Potengi é termo ornado de penduricalhos fúteis e patéticos. Tanto é que viver propriamente bem, satisfatoriamente feliz e confortável, mas sem seguir à risca essa supérflua cartilha comportamental, confronta diretamente a peculiar conceituação que aqui é dada a uma vida presumivelmente boa, mas simples e alheia às dívidas, símbolos e preocupações que alicerçam esse lamentável e irreal modus vivendi.

Dentre o caleidoscópio de ícones que condensam a tara do natalense por aparências, talvez o Carnatal – evento baiano realizado em terras potiguares – seja o maior deles. Aqui, o evento nutre um nível de obrigatoriedade semelhante ao dos alistamentos eleitoral e militar. Não participar do Carnatal, para alguns, não é apenas a mais escorreita heresia, mas o triste sinal da decadência de uma vida social condizente com as demandas expositivas da cidade. Chega-se a comprar suas vestimentas-ingressos antes mesmo de pagar a mensalidade da escola dos filhos e a conta de luz. Um caso ímpar onde estudar e não ficar nas trevas são rebaixados à condição de meras necessidades de segunda categoria.

Conforme dito, na nossa cidade a maior necessidade não é estar financeira, social e profissionalmente bem, e sim parecer estar. Não tornar públicas as aparências é corpo sem alma, razão sem sentido, praia sem sol. A tese machadiana das duas almas nos leva a crer que a sanha por aparências parece, pelo visto, representar perfeitamente a alma externa do natalense. Uma lamentável munição para aqueles que nos taxam de província.





quarta-feira, 14 de março de 2012

Festa da democracia?

Artigo originalmente publicado no Observatório da Imprensa, no Diário de Natal e na Carta Potiguar.


Festa da democracia?


Dos grandes clichês conceituais e televisivos que costumam brotar na safra dos períodos eleitorais, nenhum deles supera o mantra mecânico, repetitivo e enfadonho da festa da democracia. Tão espontâneo quanto os artificializados ambientes assépticos telejornalísticos dos quais é diuturnamente entoado, a pecha de festa da democracia, no que tange às eleições, é termo que sai das chaminés da grande mídia e paira como nuvem sobre as cabeças dos cidadãos-eleitores, fazendo com que criem a consciência de que, naquele momento em especial, estão a honrar as inúmeras cabeças guilhotinadas no heróico sacrifício histórico em favor da democracia.


É exatamente aí onde está o problema.

A consciência cívico-democrática exalada das chaminés acima referidas funciona muito mais que um vesperal lampejo de cidadania. Como fumaça, serve também para criar uma névoa que impede o cidadão de enxergar o real significado que subjaz aos seus verdadeiros conceitos, tornando nebulosa a possibilidade de compreendê-los em seu sentido mais completo e consentâneo com o que de fato representam.

Para a grande mídia, a festa da democracia se resume ao momento do voto: locomover-se fisicamente até a respectiva seção eleitoral e escolher os seus representantes. Ponto. A entonação jubilosa com que seus âncoras a anunciam reforça esse ponto de vista. Eis do que trata o triunfo máximo da cidadania; o momento de ser cidadão é o momento de votar, ápice do regime democrático. Mais farisaico, impossível.

O exercício constante dos valores democráticos

Por alguma razão, reduzem sobremaneira o real significado da cidadania ao festejá-la apenas quando das eleições municipais, estaduais e para Presidência da República. Tal cantilena, mecânica e repetitivamente propagada, fere de morte o seu real significado. A festa a que se referem é evento que é – ou deveria ser – perene, pois, diferentemente do que traz implícito esse discurso, a cidadania não se exaure no voto. Muito menos o exercício da democracia. O cidadão é cidadão permanentemente, não bienal ou quadrienalmente. É por tal característica que a democracia e a cidadania devem ser exercidas de forma tão natural e constante quanto os nossos movimentos respiratórios.


Não se festeja a democracia, então, apenas quando das eleições. Festeja-se também quando fazemos valer dos poderes fiscalizadores que a Constituição nos concede como dádiva tão importante e representativa do regime democrático e republicano quanto o próprio voto; festeja-se quando exigimos que aqueles a quem elegemos correspondam com a expectativa e confiança neles depositadas; e festeja-se até no simples ato de, por iniciativa própria, pesquisarmos nos sites oficiais de nossos poderes acerca da atuação e produção legislativa de nossos representantes. Atos possíveis de serem realizados apenas em um regime republicano e que também compõem o conceito contemporâneo de democracia de forma tão umbilical quanto o próprio voto. Contudo, não lhes é dado o espaço que merecem no seio das campanhas televisivas e tampouco lhes são conferidas razões para quaisquer festejos – isso apesar de, diferentemente do voto, ser possível realizá-los a qualquer hora.

O conceito de democracia – nunca é demais repetir – é veiculado pelos tubarões da mídia nativa não apenas de forma caolha, mas míope do olho que lhe resta. Ao festivo povo brasileiro, a festa da democracia tem suas fronteiras convenientemente cingidas ao voto, voto este que, apesar de elemento da cidadania, não deve com ela se confundir. Sua essência, como mostrado, vai muito além do sufrágio. Muito além.

Ao que parece, figura-se totalmente fora de cogitação esperar dos grandes meios de comunicação uma maciça campanha cívica extra-eleitoral de forma a fomentar a consciência da constante necessidade de exercício dos valores democráticos. Afinal, ninguém se submeteria à espada de Dâmocles de forma tão gratuitamente ingênua.

domingo, 11 de março de 2012

Os diletantes e o ensino superior

Publiquei este artigo na edição de 8 de setembro de 2010 do Diário de Natal. Também foi publicado na Carta Potiguar e acredito que em uma edição antiga de "O Amaro", jornal do Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti.

Dei uma ajeitada antes de postar aqui (apesar das inúmeras que fiz antes de publicar nestes veículos). Tenho que concordar com Clarice quando ela - supostamente - disse: "Quando releio o que escrevo, tenho a impressão que estou engolindo o meu próprio vômito".


Os diletantes e o ensino superior

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) classificou como "diletantes" aqueles que, com amor vocacional e alegria, exercem determinada arte ou ciência, escolhendo suas áreas de capacitação acadêmico/profissional em virtude da primordial identificação que nutre para com as funções a elas inerentes. O diletante encontra no seu cotidiano profissional a mais pura complementação do seu ser, realizando-se profissionalmente por exercer uma atividade que lhe proporciona a satisfação de estar convicto que, de fato, nasceu para fazer aquilo.

Os diletantes se subsumem a todo e qualquer ofício ou profissão. A realização profissional a qual acima se fez menção não raro possui umbilical elo com a causa e o efeito de seus atos enquanto profissionais. O diletante farmacêutico, por exemplo, é aquele que se realiza profissionalmente ao manipular substâncias químicas cujo escopo é a cura de alguma enfermidade naqueles que procuram os seus préstimos. O diletante engenheiro enche-se de regozijo ao ver a materialização de uma obra cuja construção foi por ele executada, idealizada e capitaneada, ciente de que dela usufruirão famílias, homens e mulheres. Ao diletante médico, não há satisfação profissional maior do que salvar uma vida, seja realizando uma intervenção cirúrgica bem sucedida, seja observando o êxito de um tratamento por ele referendado. O diletante arquiteto vê a coroação do seu esforço no soerguimento de seus projetos, estruturas, formas e desenhos nascidos de sua criatividade e sensibilidade artística e funcional, vendo tomar forma o que no início não passara de rabiscos e cálculos em uma prancheta. O diletante jurista, por sua vez, vê-se realizado, em regra, ao observar o triunfo da justiça em casos concretos mediante a utilização prática de seus conhecimentos legais e doutrinários. Nessa mesma linha, o diletante jurista se realiza reflexamente ao também combater a injustiça que, nas palavras de Rui Barbosa, desanima o trabalho, a honestidade e o bem.

Obviamente, não é a diletância sozinha que irá pôr comida nos pratos dos românticos diletantes. A compensação pecuniária pelo trabalho realizado é, natural e obviamente, indispensável ao desenvolvimento e reconhecimento de seus esforços, não raro sendo o efeito natural de um labor realizado com amor, esforço e sobretudo vocação.

Os diletantes, entretanto, aparentam estar cada vez mais escassos em tempos atuais de desvairada capitalização do ensino, de supervalorização do status social e de supremacia das aparências. A consagração pela sociedade da cega e ensandecida cultura da busca pelo dinheiro e sua elevação à alçada de único requisito na escolha das profissões vem diminuindo em progressão geométrica os que se alicerçam primordialmente em suas naturais propensões vocacionais. Evocando a máxima popular, a tendência é que se permaneça apenas o útil, dissolvendo-se cada vez mais do agradável.

Ao que parece, a época em que a vocação era a regente-mor das escolhas profissionais vem se tornando com assombrosa velocidade um passado cada vez mais remoto. Hoje em dia é comum o desprezo à formação acadêmica voltada à construção de um profissional com sólidas bases éticas, filosóficas e sociológicas simplesmente pelo fato de delas não ser possível, segundo o senso comum, extrair dividendos financeiros. Disciplinas propedêuticas, em que pese sua salutar importância para a lapidação da personalidade profissional dos discentes, são muitas vezes relegadas ao segundo plano por não caírem em concursos. O modus operandi dos professores - que muito comumente nada correspondem ao conceito paulofreiriano de educadores - vem sendo regularmente pautados no mais cabal tecnicismo, total e completamente incongruentes com a razão de ser do ensino universitário, mas consentâneos com a lógica de que são necessários e suficientes para os estudantes conseguirem um cargo público como se as cadeiras da universidade existissem exclusivamente para este fim.

Diversos atores da comunidade acadêmica vem fechando os olhos para o trabalho de conscientização acerca da função social da educação superior, faceta indelével do ensino universitário. A concepção atual da nossa classe média - ainda maioria nas cadeiras tanto do ensino superior público como do privado - vem reduzindo o ensino acadêmico a um mero trampolim para a ascensão social, pactuando professores e alunos com um sistema que sobreleva todo e qualquer aspecto, conhecimento ou disciplina que não possam ser, de acordo com os conceitos atuais, revertidos em pecúnia. O ensino técnico e frio, nesse contexto, passa a ser muito mais valorizado que o ensino tradicional, que visa formar profissionais socialmente sensíveis e cientes das suas responsabilidades para com a coletividade.

Frise-se que a patrimonialização como fim do aprendizado não é algo a ser rechaçado. Muito pelo contrário, pois ninguém espera que o esforço e reconhecimento do seu trabalho e do seu estudo não sejam reconhecidos através de um equivalente financeiro com eles condizente e que lhe confira um mínimo de conforto, dignidade e se possível algo mais que isso. Ao menos que seja observada como a única finalidade da academia, fazendo-se perder o tradicional conceito político-pedagógico do ensino acadêmico enquanto precípuo formador de um cidadão ciente de sua responsabilidade social, tal patrimonialização não deve ser encarada com um olhar de censura. Aqueles, por sua vez, que a utilizam como critério único de suas escolhas profissionais, encontrar-se-ão mais suscetíveis de não se realizarem profissionalmente e restarem frustrados por não trabalharem com aquilo que melhor se identificam, vez que não encontram a mesma satisfação que os mencionados diletantes encontram em sua rotina de trabalho.

Por óbvio, os diletantes também precisam comer, mas se diferenciam dos demais por ter apenas não seus estômagos abastecidos em função dos seus ofícios, mas também as suas almas.

sábado, 10 de março de 2012

O racismo de cada dia


Diagnosticar que o racismo que existe no Brasil se manifesta comumente de forma velada já virou um chavão sociológico dos mais notáveis. Mas o lamentável é que tal notoriedade decorra exatamente das incontestes evidências de uma enraizada cultura segregacionista existente no Brasil, país cuja mestiçagem é um dos seus símbolos maiores. A simples tonalidade epidérmica parece, ainda hoje, ser a mais evidente credencial em uma sociedade cujas aspirações de ascender à Casa Grande – e consequentemente ‘embranquecer’ - ainda fazem parte dos planos de um naco considerável do imaginário comum. Há uma estranha espécie de determinismo sócio-biológico, onde a concentração de melanina na pele é, de maneira geral, inversamente proporcional ao prestígio social e às possibilidades de ascensão e reconhecimento.
Tal racismo velado se manifesta de diversas formas. Algumas doses de inocente condescendência podem levar à conclusão de que a maioria seja involuntária; brancos, educados por brancos, crescidos entre seus semelhantes brancos, servidos por garçons negros e pardos e criados por empregadas também não-brancas possuem, de fato, uma tendência natural e involuntária para enxergar em todo não-branco um potencial trabalhador subalterno - quando não o confundem com potenciais meliantes. Trata-se de uma construção puramente social. Uma espécie de senso comum não assumido – afinal, quase ninguém se reconhece preconceituoso - que alimenta uma herança cultural racista que faz a sociedade, incluindo os não-brancos, enxergar trabalhadoras negras ainda como mucamas. Quando atrelado ao padrão estético eurocêntrico, a coisa piora, pois enseja o nascimento de comportamentos, ações, palavras e expressões racistas que, por mais que absurdos, são plenamente ignorados, e o melhor (ou pior): costumam sair de pessoas extremamente convictas de que não alimentam nenhum preconceito racial.
As expressões e as palavras são soldados de primeira linha do racismo velado e – sim, vamos trabalhar com essa hipótese – inconsciente. Manifestações reflexas de um preconceito pretensamente involuntário, não são nada sutis ao demonstrar qual a verdadeira opinião da sociedade branca (e, mais uma vez, até da não-branca) sobre aqueles de pele mais escura. Exemplos não faltam contra aqueles que Lima Barreto designou como de origem javanesa na excelente sátira Os Bruzundangas. Em determinado trecho da obra, são narrados os inconvenientes do ministro Pancome em, através de concurso, selecionar diplomatas não-mestiços: Não queria que a cousa [o êxito de mestiços nas provas] se repetisse e estudava o modo de, evitando o concurso, encontrar um candidato bonito, bem bonito, não sendo em nada javanês, que pudesse oferecer aos olhares do ministro da Coréia ou do Afeganistão um belo exemplar da beleza masculina da Bruzundanga.
As referências etnocêntricas e preconceituosas são inúmeras, como aquelas geralmente feitas aos cabelos crespos. O cabelo pixaim, traço estético marcante e característico das raízes afros, é comumente caracterizado como “cabelo ruim”. Óbvio, pois trata-se de um padrão oposto ao dos cabelos lisos, estirados. Se há beleza além das chapinhas, ela é ignorada e desprezada pela maioria das mulheres que, impregnadas por concepções que não correspondem à realidade brasileira, a elas sucumbem sem qualquer resistência e senso crítico. Quantas mulheres negam sua identidade ao recorrer a meios artificiais para se adequar a esse padrão estético? Em outras palavras, quantas mulheres renegam seus cabelos crespos e ondulados e lançam mão da chapinha para expurgar de suas cabeças essa maldita e indesejável manifestação fenotípica de origem africana? O pejorativamente chamado “cabelo de bucha” é rechaçado inclusive entre aquelas que deveriam ostentá-lo como orgulho étnico e cultural. Eduardo Galeano, autor de clássicos como “As veias abertas da América Latina” e “Futebol ao sol e à sombra”, em um artigo publicado na década de 90, afirmou que, ao folhear a revista norte-americana Ebony, publicação que se propõe a celebrar os triunfos da raça negra nos negócios, na política, na carreira militar, nos espetáculos, na moda e nos esportes, contou 182 fotografias de modelos negras. Dessas 180, apenas 12 ostentavam o pixaim afro. As demais, todas de cabelos alisados. Mas a grande e triste ironia se encontra no fato de que a maioria de seus anúncios se dedicava a propagandear produtos alisadores. Um deles, vejam vocês, chamado African Pride (orgulho africano), promete “suavizar e esticar como nenhum.” Não quero nem trazer o exemplo daquelas que aproveitam para fazer algo que parece já ter se tornado um verdadeiro fetiche escandinavo: pintar seus cabelos de loiro.
O rol de expressões e atitudes racistas do nosso dia-a-dia é constrangedoramente vasto. “Fedendo a negro”, por exemplo, é expressão designada àquele sujeito que está cheirando mal. Ao falar alguma coisa ou fazer algo que merece desaprovação, o agente é cotidianamente referido como “nego” ou “neguinho”: “aí vem neguinho falar um monte de m...” ou “o que teve de nego correndo da polícia não foi brincadeira!”. Falando em polícia, essa costuma reproduzir religiosamente as concepções racistas da sociedade em seu modus operandi, situações que se agravam por serem protagonizadas por agentes estatais, operadores de segurança pública e supostos zeladores da ordem e da paz coletiva. Não é de hoje que os policiais trabalham com um arquétipo preconceituoso em suas abordagens e operações, desumanizando aqueles que nele se enquadram. O jovem pobre, negro e morador de áreas periféricas, por exemplo, é em regra visto como um potencial delinquente e costuma ser sumariamente tratado como tal. Suas residências e de seus familiares são violadas por operações policiais a qualquer hora – inclusive à noite - e sem mandado judicial, sendo extorquidos e abusados por servidores que, em que pese terem o dever de protegê-los, veem na sua condição sócio-econômica e na cor de sua pele a oportunidade de satisfazer sua lascívia autoritária ao desrespeitar uma legalidade que o Estado, vejam vocês, os incumbiu exatamente de zelar. A abordagem em blitz de trânsito é da mesma forma é realizada muito mais em negros do que em brancos, consequências de um preconceito alçado ao nível institucional.
Também como elementos mantenedores do status quo racista estão as piadas e anedotas envolvendo negros. Propalados também de forma inocente, dizeres como “negro quando não caga na entrada, caga na saída” ou que o cavaquinho é pequeno para que negros possam tocar usando algemas podem, a princípio, não representar nada de substancial, afinal, são apenas “tiraçõezinhas de onda”. A verdade, no entanto, é que constituem pequenas britas colocadas na argamassa do invisível muro do preconceito, que não é visto exatamente pelo fato de estar coberto pelo jocoso manto de um racismo supostamente humorístico cujos tecidos são, tão somente, costurados pela incisiva, secular e indiscreta agulha da discriminação e da ignorância.
A nossa sociedade, mestiça em sua gênese, não atingiu um nível de sensibilidade e consciência a ponto de perceber que é exatamente das inocentes involuntariedades como as acima enumeradas que se perpetuam os odiosos estereótipos preconceituosos que ainda hoje permanecem impávidos no inconsciente de uma coletividade que, bombardeada pela estética eurocêntrica, se olha no espelho e ainda sente vergonha. O embranquecimento social, visto como sinal de progresso, não passa da mais abjeta involução, involução que fere de morte aquilo que é quiçá o maior responsável pelo tão capitalizado e viçoso fascínio de nossas terras: o caleidoscópio étnico e cultural que, segundo o saudoso mestre Darcy Ribeiro, nos tornou a mais ímpar e fascinante nação do planeta.