Há aproximadamente
seis anos, um discurso no mínimo pitoresco foi entoado da tribuna da Câmara
Municipal de São Paulo. Seu autor, um antigo e bem sucedido cantor popular,
conseguira se alçar ao exercício da vereança por meio dos tênues resquícios do
sucesso de outrora somados a sua inusitada participação em um reality show transmitido nacionalmente e
que acabou por retirá-lo das mais recônditas periferias do ostracismo.
O então ilustre
vereador, de sotaque característico e extravagância nas entonações, destacou-se
também por seus caricatos posicionamentos conservadores. No discurso cuja
menção inicia o texto, fez uma defesa enfática, machista e sem rodeios da
nefasta prática da exploração sexual de crianças e adolescentes em nosso País,
serviço cuja procura por estrangeiros costuma ser bastante intensa.
Afirmou o dileto
ex-parlamentar (diferentemente das últimas eleições, não conseguiu se reeleger
no pleito de 2012) que o visitante que vem ao país atrás de sexo não pode ser
considerado criminoso: “ninguém nega a beleza da mulher brasileira. Hoje as
meninas de 16 anos botam silicone, ficam popozudas, põem uma saia curta e
provocam. Aí vem o cara, se encanta, vai ao motel, transa e vai preso? Ninguém
foi lá à força. A moça tem consciência do que faz”, declarou. “O cara (turista)
não sabe por que ela está lá. Ele não é criminoso, tem bom gosto.” Ainda, para
o ex-edil da capital paulistana, há “demagogia” e “frescura” nos que divergem
da sua tese.
Nesse
contexto de reivindicação e luta contra os grilhões culturais e socioeconômicos
que solapam um tratamento verdadeiramente digno, respeitoso e igualitário às
mulheres do nosso País tanto por parte do Estado como da própria sociedade,
creio que seja pertinente fazer a seguinte indagação: o que o machismo, a
homofobia e a violação – sexual ou não - dos direitos das crianças e
adolescentes tem em comum? Quase tudo.
Em
uma sociedade machista, preconceituosa, classista, heteronormativa e
adultocêntrica como a nossa, o contexto de violência contra mulheres,
homossexuais e crianças costuma se entrelaçar de maneira bastante íntima, visto
que brotam do mesmo bloco homogêneo de ideias e concepções caracterizadas
principalmente pelo mais tacanho conservadorismo que ainda alça o sujeito
branco, heterossexual e adulto ao status de super-cidadão, dotado de
privilégios e direitos alijados de todos aqueles que divergem deste padrão.
O
sujeito machista, cuja concepção de estrutura familiar ainda se funda na
centralizadora e hierarquizada lógica patriarcal de irrestrita submissão da
mulher ao homem, compartilha, em regra, da bolorenta opinião de que o conceito
de família é e sempre será fundamentado no estanque modelo de homem, mulher e
filhos, não havendo qualquer margem para a diversidade.
Acontece
que, com a crescente complexidade das relações intersubjetivas e o
reconhecimento da sociedade enquanto plural e consequentemente submetida às
constantes transformações dos conceitos e valores que a arraigam, o vínculo
sanguíneo passou a ser secundário na caracterização da família, que hoje abarca
um grande número de espécies que, por sua vez, independem de qualquer grau de parentesco.
Com
efeito, a tônica caracterizadora de um núcleo familiar passa necessariamente
pelas relações de afeto entre seus membros, elemento nuclear na definição da
família, independentemente da existência de filhos, laços sanguíneos, orientação
sexual bem como da existência de relações carnais entre seus membros.
O
tradicional “chefe de família”, reproduzido na figura paterna que, de postura
centralizadora e militaresca, provem sozinho o lar e disciplina a esposa
dona-de-casa e os filhos mantendo-os em permanente estado de submissão, é
figura que caminha fatalmente para a extinção. As famílias em geral estão, cada
vez mais, lançando mão desse modelo antiquado e hierarquizado de relações
intrafamiliares, reconhecendo, além da sua falência, o afeto como único e
indispensável atributo para a conceituação da família contemporânea.
Tais
conquistas são uma clara consequência da crescente emancipação política, socioeconômica
e sexual das mulheres, cientes da histórica opressão que lhes cai aos ombros e, ao
mesmo tempo, da força transformadora que possuem enquanto coletividade. Está aí a
bem sucedida iniciativa da Marcha das Vadias que, em nível internacional,
questiona os paradigmas e convenções sociais que diariamente matam e oprimem
mulheres de todo o planeta.
No
que diz respeito à violência contra mulheres, esta nasce muitas vezes da
relutante insistência dos seus companheiros em manter no seio familiar este
anacrônico e ultrapassado modelo. Acossadas por uma cultura de vergonha,
dependência e submissão, as vítimas tendem a não possuir estímulo e condições
para denunciar e assim confrontar o contexto de violação no qual estão
inseridas. Para o agressor, prenhe de arcaicas concepções que o fazem se
arrogar na deplorável autoridade do chefe de família, a independência
e a autonomia da mulher passa a ser confundida com insubordinação, e daí para
as vias de fato é muito, muito pouco.
A
incapacidade de compreender que o direito de formar núcleos familiares também
se estende a homossexuais, por exemplo, parte do mesmo equivocado entendimento
de que desde as primitivas comunidades pré-hominídeas a definição de família
continua a mesma. E se o incômodo com a sexualidade alheia é uma marca da nossa
sociedade, a formação de famílias homoafetivas ainda é vista por muitos como
uma transgressão moral em grau máximo que deve ser combatida com discriminação,
desrespeito e violência, seja física ou moral.
Se
o elo entre machismo, feminicídio e homofobia é evidente, passando pela
compreensão, dentre outras coisas, de que a família deve se reger pelos dogmas
do feudal patriarcado heteronormativo, a ligação destes dois com a violação dos
direitos fundamentais de crianças e adolescentes é ainda mais intensa.
As
agressões perpetradas contra mulheres e que costumam ocorrer no ambiente doméstico
e familiar acabam por resvalar, física ou simbolicamente, nas crianças que
estão sob a responsabilidade do casal, que passam a naturalizar este contexto agressões
físicas, verbais ou psicológicas – as meninas, na condição de potenciais vítimas,
oprimidas pelo ideário machista que marca a pele de suas genitoras com
sucessivos hematomas (quando não são as próprias crianças que são as vitimadas), enquanto os meninos como potenciais agressores e reprodutores do
discurso misógino, moralista e patriarcal que alicerça toda sorte de agressões
contra mulheres.
A
agressão, seja física ou simbólica, passa assim a interferir no desenvolvimento
personalidade daquelas crianças e adolescentes, ainda em formação
biopsicológica, mesmo quando “apenas” presenciam a violência.
Ainda,
a situação das crianças sob o ponto de vista da autodeterminação é mais
delicada. Demais setores e segmentos da sociedade podem se aglutinar na luta
política pelo reconhecimento e realização de direitos. Mas e as crianças e
adolescentes? Possuem essa autonomia e capacidade de organização? Por óbvio não,
o que as submete ainda mais às prevalentes e deformadoras concepções culturais
adultocêntricas que, com requintes de um machismo sádico, deram
ensejo a julgado do Superior Tribunal de Justiça que absolveu sujeito que
manteve relações sexuais com garotas de 14 anos de idade em situação de exploração sexual por
entender que as mesmas “sabiam o que estavam fazendo”.
Direitos,
políticas públicas e ações afirmativas voltadas às crianças e adolescentes
costumam ser marcadas tanto pelos mantras do adultocentrismo como pela cartilha
da heteronormatividade, imperantes em uma sociedade que insiste em tratá-las
como meros adultos-mirins enquanto frustra e impede o recorte de gênero como elemento do processo educacional de formação dos nossos jovens. Um verdadeiro favor à manutenção de uma miríade de dogmas sexistas formalmente sedimentados
desde a mais tenra idade na cabeça das pessoas.
O
tratamento por parte do Estado às crianças e adolescentes, assim, acaba por
adotar essa perspectiva unilateral como regra, resgatando a ultrapassada e
lamentável ideologia do – de triste memória - Código de Menores diretamente dos
porões das quinquilharias legislativas que, em tempo revogadas, possuem valor
unicamente histórico. Revivendo os parâmetros menoristas de tratamento
dispensado às crianças e adolescentes anteriores à vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, acabam por regredi-los à antiga e lamentável condição
de objetos, não de sujeitos de direito.
Em
ritmo aquém do que gostaríamos, a cultura do desrespeito e da ignorância acima
definida em algumas de suas inúmeras matizes vem sendo aos poucos desconstruída.
E uma maneira de combatê-la é exatamente neutralizando os frágeis discursos que
as sustentam, embebidos até o pescoço nas superficiais fontes do senso comum.
O
despretensioso e muitas vezes jocoso discurso de ódio, trivial e corriqueiro,
proferido nas reuniões de família, festas de aniversários e mesas de bar, é o
que mais profusamente legitima as nefastas práticas neles consubstanciadas,
mesmo que não seja esta a intenção direta. Confrontá-los com propriedade é
dever de todos os comprometidos com a construção de uma sociedade em que a
barbárie, a misoginia e o preconceito passem a ser a exceção, e não a regra.