Final de tarde, sol se pondo. Cansados, pouco
menos de uma dúzia de garotos estão em campo. Alguns outros aguardam resignados
atrás das traves, ainda amargurando a derrota da partida anterior. O campo, de
dimensões modestas, é de terra. As traves, de madeira. Uma delas sem o travessão.
Não suportou um forte e certeiro chute de fora da área. Tijolos que restaram de uma
construção próxima são improvisados como arquibancadas. A pelada começou
aproximadamente às três da tarde, horário em que o sol está esfriando. Alguns incautos chegaram ao campo às duas horas, à
revelia dos conselhos de suas mães e do dever de casa para o dia seguinte.
Eis
que acontece exatamente quando estão todos cansados, naquele momento em que não se leva mais a
sério os derradeiros minutos das partidas vespertinas tal qual se levou os
primeiros jogos daquela tarde; exatamente na despedida da aurora, na
transição entre do dia para a noite noite, onde a luz, este natural refletor que condiciona o início e o fim das juvenis e amadoras pelejas
futebolísticas, resta escassa e pouco a pouco se alastra a escuridão, formando uma penumbra
que acaba por dissipar os últimos resquícios de claridade, é que
se ouve um grito que dá início a um violento ritual aos olhos dos de fora, mas
peculiarmente amigável aos olhos dos de dentro: o grito da Tora-réia.
A Tora-réia – doravante Tora-reia, sem acento, em observância às normas da mais recente
reforma ortográfica -, assim como o popular Cascudinho, é uma das brincadeiras
mais tradicionais dos campinhos de várzea de todo o país, com variações apenas
em sua nomenclatura. É a coroação de uma tarde de alegria nascida das
descomprometidas partidas de futebol entre amigos onde, ao seu final, deixa-se
de lado a responsabilidade e o dever de vencer para brincar com a bola
de uma maneira, digamos assim, um tanto quanto pouco ortodoxa.
As
batalhas campais da Tora-reia consistem basicamente na ausência de faltas e de toda
sorte de penalidades. É, por sinal, um dos raros momentos do futebol onde o gol
deixa de ser o clímax do esporte bretão; a Tora-reia tem a façanha de fazer com
que seus participantes sequer se importem em que direção se encontram as
traves.
Carrinhos
por trás, pés-altos, tostões, calços, tesouras voadoras e entradas de sola:
tudo que poderia eventualmente ser tipificado como uma autêntica tentativa de
homicídio passa a ser permitido na Tora-reia. A finalidade de, com força, chutar
a bola em direção aos colegas – as chamadas bombas ou
tivucos – também rege o viés
animalesco, sanguinário e brutal dos finais de partidas de várzea. O cidadão
que tem a infelicidade de estar com a bola, se não chutá-la logo em alguém ou
para longe, vira uma potencial vítima de fraturas, concussões e hematomas
decorrentes de todas as refinadas técnicas enumeradas no início do parágrafo.
A Tora-reia
tem também um sentido político. Engloba ao mesmo tempo elementos anárquicos –
sem faltas, arbitragem, regras e limites – e democráticos – todos, sem exceção, viram um indiscriminado alvo
de sopapos, basta estar com a bola. O caráter democrático da Tora-reia é tão
evidente que, mesmo aqueles que se situavam atrás das traves, sentados nos
banquinhos improvisados com tijolos e esperando a próxima partida, atendem de
forma categórica o seu chamado, entrando em campo com uma voracidade homicida independentemente do fato de não estarem participando da partida na qual se
iniciara a singela troca de afagos entre seus participantes.
A
denominação Tora-reia possui algumas variações terminológicas. Há lugares em
que se intitula Hora da sopa, definida
de forma sutilmente lacônica como Do
pescoço pra baixo é canela. Há outra brincadeira chamada de Tora-bomba que, na verdade, é uma versão
mais amena da Tora-reia, vez que diz
respeito apenas a bombardear os companheiros, abstendo-se dos
ataques físicos diretos. Desnecessário observar que a Tora-bomba é bem menos
divertida.
O
melhor de tudo é o fenômeno social decorrente das aparentemente ambíguas
relações entre os participantes desse evento de fim de tarde: protagonizam
cenas da mais pura barbárie, do mais desvairado sadismo e da mais gritante
selvageria para, logo após, saírem juntos em um espontâneo clima de companheirismo
e harmonia em direção às suas residências, comentando acerca dos lances mais
memoráveis do dia e dos resultados da última rodada do Brasileirão.
A Tora-reia,
é bom que fique claro, também possui efeitos colaterais. E não pensem que tais
efeitos estão na forma de hematomas e luxações. Estes são diretos, esperados,
ínsitos à brincadeira e tampouco temidos pelos guerreiros da
bola. Aqui se trata de outras consequências, incontestavelmente mais
relevantes. Por exemplo: é comum algum dos jogadores mais açodados chutar a
bola para aquele terreno baldio repleto de urtigas onde já se desenvolvera uma
mata indevassável; ou chutá-la para a via principal próxima ao campo por onde
passam os ônibus. Daí, as chances da bola se perder meio à flora local ou ser
atropelada por algum veículo são altíssimas. Também é considerável a
probabilidade da pelota cair nas dependências daquele(a) vizinho(a) ranzinza, um(a) senhor(a) de idade desgostoso(a) com o fato da meninada estar brincando próximo à sua residência. Mas
o mais improvável nisso tudo é que seja devolvida – sem conter golpes de faca,
frise-se - mesmo com todo o suplicante lobby
dos atletas e da relutância em decidir quem será o responsável por tocar a campainha para pedir a bola (aí a briga pode ser maior que a da própria Tora-reia).
A
paixão do brasileiro por futebol atinge tamanha devoção que a ausência de bola
nunca fora razão para não jogar. Traves, então, são requisitos extremamente
dispensáveis. Quando por diversos motivos não é permitido o uso da pelota -
como nos intervalos da aula, onde, para o descontentamento dos estudantes, o
professor de educação física resistia em liberá-la -, improvisa-se com qualquer
objeto que ostente um coeficiente mínimo de chutabilidade: latinhas de refrigerante, tampinhas
de garrafa, bolas de meia e até pedras substituem com autoridade aquela bola
de couro caríssima das lojas de artigos esportivos.
O pátio do colégio se torna
o campo, mesmo sob o inquisitório olhar de desconfiança e desaprovação dos
bedéis e coordenadores, incisivos em suas funções de censor quando a
brincadeira fatalmente descamba para a inevitável Tora-reia. Incumbidos de
cessar com aquele primitivismo sanguinolento,
presenciam horrorizados os recíprocos bicudos nas canelas alheias e as depilações
instrumentalizadas por desgastados solados de borracha. Daí, os alunos envolvidos são levados para a coordenação, pais são notificados do acontecido e os estudantes
subversivos da ordem e da moralidade pedagógica recebem sanções tanto em suas casas
como na escola - insuficientes, porém, para pôr rédeas em seus ímpetos
futebolísticos e, consequentemente, na sempre irreprimível Tora-reia. No dia
seguinte estarão lá, jogando novamente, ao arrepio das advertências e das sanções
dadas pelos seus responsáveis.
As
origens e elementos semântico-terminológicos do termo Tora-reia são simples de serem visualizados. Dizem respeito sobretudo à junção de dois verbos sinônimos nascidos em meio à rica e coloquial
linguagem popular: torar e reiar. O segundo termo ainda é alvo de
polêmicas fonéticas e etimológicas. Há quem o pronuncie sem o i, pronunciando rear ao invés de reiar. É
verbo do qual derivam o substantivo reiada
e a famigerada expressão reiou-se,
esta última sendo empregada na maioria das vezes sob a forma de interjeição,
exprimindo estados emocionais de susto, admiração e surpresa. Reiou-se! Lá vem o bedel! Esconde a tampinha,
rápido!
Entreveros
gramaticais, contudo, são plenamente incapazes de retirar a poesia, a inocência
e o romantismo de uma brincadeira nascida nas ruas e que resiste até hoje,
mesmo diante do boom imobiliário que
vem levando os campinhos de várzea à extinção e da popularização e surgimento
de novas alternativas tecnológicas de entretenimento entre os jovens e adolescentes de hoje em dia (não posso deixar de
observar que considero a fria assepsia das redes sociais como inimiga número um da
gostosa e insubstituível mistura de sangue e barro que é a Tora-reia, bem como de todas as tradicionais brincadeiras de rua, tais quais as excelentes Tô no poço, Tica-tica, Sete Pecados e Garrafão).
Por
mais contraditório que possa parecer, a Tora-reia possui lugar confortável meio
às mais saudosas memórias dos outrora juvenis peladeiros vespertinos que, ao delas
lembrar, sentem de forma concomitante o amargo gosto da saudade e o doce sabor
da felicidade provinda daqueles momentos onde a maior preocupação que tinham
eram as eventuais repreensões que sofreriam de suas mães ao chegarem em casa
roxos, repletos de feridas e sem os chaboques de seus respectivos dedões.
O
melhor meio de mensurar uma infância bem vivida é pela quantidade de cicatrizes
que o sujeito possui no joelho, prova indelével de que foi uma
criança saudável, altiva e serelepe. Grafadas com sangue, suor e desespero
materno, funcionam elas como uma espécie de registro de que aqueles que as
carregam não foram criados dentro de um apartamento por suas avós,
divertindo-se apenas com jogos eletrônicos, televisão e internet. Não tenham dúvidas de que parte destas cicatrizes tiveram
origem exatamente nesses nostálgicos, antológicos e diários combates do
pôr-do-sol.
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