quinta-feira, 29 de março de 2012

Da necessidade efetiva de um estado laico


Churchill dizia que a democracia é o regime de governo no qual você tem a certeza de que quem bate na sua porta às 6 da manhã é o leiteiro. O regime democrático possui uma natural e inevitável ligação umbilical com o modelo republicano, juntos plasmando uma série de direitos e garantias dos cidadãos em sua dimensão individual, coletiva e difusa. A nossa democracia, semidireta e de viés representativo, congrega elementos de participação indireta por meio dos deputados, senadores e vereadores com instrumentos de participação direta da população nas decisões do Estado, como a ação popular e a iniciativa para dar início ao processo legislativo de elaboração de normas. Não existe meia-república, de modo que, para que assim seja caracterizada, devem nela estar presentes todos os seus elementos conformadores; não há, por exemplo, como conceber um regime republicano sem transparência nas ações, iniciativas, gastos e investimentos públicos por parte do Estado, mesmo que nele estejam presentes todas as suas demais características delineadoras  tais quais o pluralismo político, a titularidade popular do poder e a laicidade do Estado, da qual se tratará adiante.


O respeito à crença religiosa e a asseguração da liberdade de culto também são pilares do modelo democrático/republicano que, por sua vez, costuma dar uma proteção especial aos direitos e garantias individuais dos cidadãos por meio de mecanismos institucionais que limitam o voraz e tradicional ímpeto estatal em interferir na individualidade dos seus administrados. Da mesma forma que a liberdade de religião é uma garantia constitucional, e sendo a isonomia um dos muitos princípios das democracias republicanas, as constituições de origem liberal procuram dar o mesmo tratamento e toda e qualquer espécie de manifestação religiosa, não favorecendo e tampouco perseguindo ou marginalizando quaisquer delas. Daí surge a relevância do Estado laico como instrumento de respeito, tolerância e boa convivência tanto no que se refere às relações entre as mais diversas matrizes religiosas bem como no trato destas com as próprias entidades estatais.

Diferentemente do que algumas vozes fundamentalistas apregoam, o estado laico não nega o caleidoscópio multicultural sob o qual se funda nossa sociedade. Tampouco ignora a diversidade de credo que sob ela também se erige. O estado laico, simplesmente, reconhece a diversidade de religiões, mas não se pauta – nem deve se pautar – em dogmas religiosos para fundamentar suas decisões políticas. Tratar-se-ia, caso contrário, de uma espécie de teocracia e não de uma república, vez que lhe falta o apelo da isonomia religiosa e, principalmente, da laicidade cuja existência garante tão somente a não perseguição institucional dos credos não-oficiais além de, em consequência, diminuir a reprimenda social e institucional às religiões diversas daquela adotada pelo Estado por meio de sua Constituição.

No estado laico e democrático de direito, nada está acima da Constituição. A Bíblia, o Torá, o Corão e demais sistematizações escritas de dogmas e preceitos religiosos, numa ótica republicana, apesar de terem suas celebrações litúrgicas devidamente protegidas pelo texto constitucional, não devem prevalecer quando em confronto com a Lei Maior. Um senador da república como Magno Malta (PR-ES) que, na condição de parlamentar, afirma que a Bíblia está acima da Constituição, não faz jus à nobre função que lhe confere a nossa Carta Magna, considerando que a Bíblia serve à fé privada do cristão – e somente a ela. A crença é elemento de natureza pessoal, particular, já o Estado é - ou deveria ser - impessoal em todas as suas matizes. O pronunciamento do senador se agrava ainda mais se observarmos que dentre os deveres dos parlamentares está exatamente o de proteger a nossa Constituição que, por sua vez, atesta como indevida qualquer ação estatal fundada em dogmatismos religiosos ao não elevar credo algum ao status de oficial.

É muito comum encontrarmos as paredes das mais diversas repartições públicas ornadas com símbolos religiosos. Quando o desembargador Luiz Zveiter, ao assumir a presidência do Tribunal de Justiça do Rio da Janeiro no início de 2010, determinou a retirada dos crucifixos espalhados pelo edifício e ordenou a desativação da capela que se situava em suas dependências, representou um raro lampejo de lucidez republicana no judiciário brasileiro que, a começar pelo STF, corte maior do País, é também um inveterado adepto da ornamental iconofilia cristã. 

O problema, todavia, não é só do referido poder, mas dos prédios públicos em geral, locais onde se personifica fisicamente um estado supostamente laico. Pior ainda é quando agentes políticos lançam mão de argumentos religiosos para barrar iniciativas institucionalmente legítimas como o kit-anti-homofobia do MEC bem como para tomar medidas contra o recente reconhecimento civil da união homoafetiva pelo Supremo, conforme vem fazendo a bancada evangélica do Congresso Nacional.  Entender que os dogmas cristãos devem prevalecer ante a laicidade do Estado seria extrair toda a normatividade que possui a Lei Maior nesse sentido além de, consequentemente, dar vazão à intolerância religiosa, já considerável mesmo na vigência de um Estado laico. Assim o digam as religiões de matriz africana.

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