Churchill
dizia que a democracia é o regime de governo no qual você tem a certeza de que
quem bate na sua porta às 6 da manhã é o leiteiro. O regime democrático possui
uma natural e inevitável ligação umbilical com o modelo republicano, juntos
plasmando uma série de direitos e garantias dos cidadãos em sua dimensão
individual, coletiva e difusa. A nossa democracia, semidireta e de viés representativo,
congrega elementos de participação indireta por meio dos deputados, senadores e
vereadores com instrumentos de participação direta da população nas decisões do
Estado, como a ação popular e a iniciativa para dar início ao processo
legislativo de elaboração de normas. Não existe meia-república, de modo que,
para que assim seja caracterizada, devem nela estar presentes todos os seus
elementos conformadores; não há, por exemplo, como conceber um regime
republicano sem transparência nas ações, iniciativas, gastos e investimentos
públicos por parte do Estado, mesmo que nele estejam presentes todas as suas
demais características delineadoras tais
quais o pluralismo político, a titularidade popular do poder e a laicidade do
Estado, da qual se tratará adiante.
O
respeito à crença religiosa e a asseguração da liberdade de culto também são
pilares do modelo democrático/republicano que, por sua vez, costuma dar uma
proteção especial aos direitos e garantias individuais dos cidadãos por meio de
mecanismos institucionais que limitam o voraz e tradicional ímpeto estatal em
interferir na individualidade dos seus administrados. Da mesma forma que a liberdade
de religião é uma garantia constitucional, e sendo a isonomia um dos muitos
princípios das democracias republicanas, as constituições de origem liberal
procuram dar o mesmo tratamento e toda e qualquer espécie de manifestação
religiosa, não favorecendo e tampouco perseguindo ou marginalizando quaisquer
delas. Daí surge a relevância do Estado laico como instrumento de respeito,
tolerância e boa convivência tanto no que se refere às relações entre as mais
diversas matrizes religiosas bem como no trato destas com as próprias entidades
estatais.
Diferentemente
do que algumas vozes fundamentalistas apregoam, o estado laico não nega o
caleidoscópio multicultural sob o qual se funda nossa sociedade. Tampouco
ignora a diversidade de credo que sob ela também se erige. O estado laico,
simplesmente, reconhece a diversidade de religiões, mas não se pauta – nem deve
se pautar – em dogmas religiosos para fundamentar suas decisões políticas.
Tratar-se-ia, caso contrário, de uma espécie de teocracia e não de uma
república, vez que lhe falta o apelo da isonomia religiosa e, principalmente,
da laicidade cuja existência garante tão somente a não perseguição
institucional dos credos não-oficiais além de, em consequência, diminuir a
reprimenda social e institucional às religiões diversas daquela adotada pelo
Estado por meio de sua Constituição.
No
estado laico e democrático de direito, nada está acima da Constituição. A
Bíblia, o Torá, o Corão e demais sistematizações escritas de dogmas e preceitos
religiosos, numa ótica republicana, apesar de terem suas celebrações litúrgicas
devidamente protegidas pelo texto constitucional, não devem prevalecer quando em
confronto com a Lei Maior. Um senador da república como Magno Malta (PR-ES)
que, na condição de parlamentar, afirma que a Bíblia está acima da Constituição,
não faz jus à nobre função que lhe confere a nossa Carta Magna, considerando
que a Bíblia serve à fé privada do cristão – e somente a ela. A crença é
elemento de natureza pessoal, particular, já o Estado é - ou deveria ser - impessoal
em todas as suas matizes. O pronunciamento do senador se agrava ainda mais se
observarmos que dentre os deveres dos parlamentares está exatamente o de
proteger a nossa Constituição que, por sua vez, atesta como indevida qualquer
ação estatal fundada em dogmatismos religiosos ao não elevar credo algum ao status de oficial.
É
muito comum encontrarmos as paredes das mais diversas repartições públicas
ornadas com símbolos religiosos. Quando o desembargador Luiz Zveiter, ao
assumir a presidência do Tribunal de Justiça do Rio da Janeiro no início de
2010, determinou a retirada dos crucifixos espalhados pelo edifício e ordenou a
desativação da capela que se situava em suas dependências, representou um raro
lampejo de lucidez republicana no judiciário brasileiro que, a começar pelo STF,
corte maior do País, é também um inveterado adepto da ornamental iconofilia
cristã.
O problema, todavia, não é só do referido poder, mas dos prédios
públicos em geral, locais onde se personifica fisicamente um estado
supostamente laico. Pior ainda é quando agentes políticos lançam mão de
argumentos religiosos para barrar iniciativas institucionalmente legítimas como
o kit-anti-homofobia do MEC bem como para tomar medidas contra o recente
reconhecimento civil da união homoafetiva pelo Supremo, conforme vem fazendo a
bancada evangélica do Congresso Nacional. Entender que os dogmas cristãos devem
prevalecer ante a laicidade do Estado seria extrair toda a normatividade que
possui a Lei Maior nesse sentido além de, consequentemente, dar vazão à
intolerância religiosa, já considerável mesmo na vigência de um Estado laico.
Assim o digam as religiões de matriz africana.
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