quarta-feira, 14 de março de 2012

Festa da democracia?

Artigo originalmente publicado no Observatório da Imprensa, no Diário de Natal e na Carta Potiguar.


Festa da democracia?


Dos grandes clichês conceituais e televisivos que costumam brotar na safra dos períodos eleitorais, nenhum deles supera o mantra mecânico, repetitivo e enfadonho da festa da democracia. Tão espontâneo quanto os artificializados ambientes assépticos telejornalísticos dos quais é diuturnamente entoado, a pecha de festa da democracia, no que tange às eleições, é termo que sai das chaminés da grande mídia e paira como nuvem sobre as cabeças dos cidadãos-eleitores, fazendo com que criem a consciência de que, naquele momento em especial, estão a honrar as inúmeras cabeças guilhotinadas no heróico sacrifício histórico em favor da democracia.


É exatamente aí onde está o problema.

A consciência cívico-democrática exalada das chaminés acima referidas funciona muito mais que um vesperal lampejo de cidadania. Como fumaça, serve também para criar uma névoa que impede o cidadão de enxergar o real significado que subjaz aos seus verdadeiros conceitos, tornando nebulosa a possibilidade de compreendê-los em seu sentido mais completo e consentâneo com o que de fato representam.

Para a grande mídia, a festa da democracia se resume ao momento do voto: locomover-se fisicamente até a respectiva seção eleitoral e escolher os seus representantes. Ponto. A entonação jubilosa com que seus âncoras a anunciam reforça esse ponto de vista. Eis do que trata o triunfo máximo da cidadania; o momento de ser cidadão é o momento de votar, ápice do regime democrático. Mais farisaico, impossível.

O exercício constante dos valores democráticos

Por alguma razão, reduzem sobremaneira o real significado da cidadania ao festejá-la apenas quando das eleições municipais, estaduais e para Presidência da República. Tal cantilena, mecânica e repetitivamente propagada, fere de morte o seu real significado. A festa a que se referem é evento que é – ou deveria ser – perene, pois, diferentemente do que traz implícito esse discurso, a cidadania não se exaure no voto. Muito menos o exercício da democracia. O cidadão é cidadão permanentemente, não bienal ou quadrienalmente. É por tal característica que a democracia e a cidadania devem ser exercidas de forma tão natural e constante quanto os nossos movimentos respiratórios.


Não se festeja a democracia, então, apenas quando das eleições. Festeja-se também quando fazemos valer dos poderes fiscalizadores que a Constituição nos concede como dádiva tão importante e representativa do regime democrático e republicano quanto o próprio voto; festeja-se quando exigimos que aqueles a quem elegemos correspondam com a expectativa e confiança neles depositadas; e festeja-se até no simples ato de, por iniciativa própria, pesquisarmos nos sites oficiais de nossos poderes acerca da atuação e produção legislativa de nossos representantes. Atos possíveis de serem realizados apenas em um regime republicano e que também compõem o conceito contemporâneo de democracia de forma tão umbilical quanto o próprio voto. Contudo, não lhes é dado o espaço que merecem no seio das campanhas televisivas e tampouco lhes são conferidas razões para quaisquer festejos – isso apesar de, diferentemente do voto, ser possível realizá-los a qualquer hora.

O conceito de democracia – nunca é demais repetir – é veiculado pelos tubarões da mídia nativa não apenas de forma caolha, mas míope do olho que lhe resta. Ao festivo povo brasileiro, a festa da democracia tem suas fronteiras convenientemente cingidas ao voto, voto este que, apesar de elemento da cidadania, não deve com ela se confundir. Sua essência, como mostrado, vai muito além do sufrágio. Muito além.

Ao que parece, figura-se totalmente fora de cogitação esperar dos grandes meios de comunicação uma maciça campanha cívica extra-eleitoral de forma a fomentar a consciência da constante necessidade de exercício dos valores democráticos. Afinal, ninguém se submeteria à espada de Dâmocles de forma tão gratuitamente ingênua.

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