Genial em todas as
suas expressões artístico-literárias – que vão desde crônicas, poesias, livros,
ensaios e roteiros para a dramaturgia -, Machado de Assis é muito mais que um
ícone da literatura nacional. É a elevação inconteste da nossa produção
literária aos píncaros do panteão dos grandes autores universais como
Shakespeare e Camões.
Na condição de contista, Machado, como de
costume, também não desperdiçava tinta. “O espelho” é um dos
seus contos que melhor representam a desenvoltura ímpar com que emoldurava
temáticas mundanas. Como bem diz o seu próprio subtítulo, trata o mesmo do
“esboço de uma nova teoria da alma humana”. Seu protagonista, personagem
chamado Jacobina, discorre ininterruptamente para quatro ou cinco
interlocutores acerca de uma espécie de teoria bipartite da alma, segundo a
qual cada indivíduo traria consigo duas almas: uma que olha de dentro para fora,
outra que olha de fora para dentro. Compara-as Jacobina às duas metades de uma
laranja, colocada como representação metafísica do homem. Quem perde uma das
metades – diz ele aos seus interlocutores – perde fatalmente metade da sua
existência. A alma que olha para dentro seria a alma convencional, conhecida de
todos, enquanto a que olha para fora pode se materializar em qualquer coisa,
concreta ou abstrata, a exemplo de um livro, um ofício, um objeto, uma obra de
arte ou até mesmo uma apresentação musical. Sem a segunda metade, entra o
sujeito em uma crise existencial que, tão somente, torna sua vida um lamentável
arremedo insípido e ardoroso por demais para ser postergado até os seus
momentos finais.
Além da inigualável
riqueza estética e metafórica, outro aspecto fascinante nos escritos de Machado
é a sua atemporalidade. O conteúdo de “O espelho”, em especial, pode ser
analisado sob a perspectiva de quaisquer costumes e convenções sociais de
qualquer lugar do mundo, tanto sob o prisma individual como sob o coletivo. Em
termos atrevidamente simplórios, poder-se-ia então questionar: onde se
encontraria a alma externa do sujeito que nasce, cresce e se reproduz em nossa
ensolarada esquina de continente chamada Natal?
Sabendo da
supervalorização que os nossos concidadãos nutrem por um mundo de fantasias,
não é difícil tirar certas conclusões a respeito. Para alguns, estar em
evidência nas rodas sociais parece ser tão essencial quanto respirar. O mesmo
ocorre quando o assunto é “estar bem” no que diz respeito às suas condições
econômicas. Estar confortável financeiramente, entretanto, não é o que
mais importa. Mostrar a terceiros que está – mesmo que esteja na mais
lamentável situação de penúria -, isso sim, é inquestionavelmente mais
relevante que factualmente garantir as necessidades do lar. É exatamente nesse
sentido que se costuma fazer um esforço sobre-humano em exacerbado prestígio ao
status social
que rege a vida de boa parte dos natalenses: troca-se de carro mesmo não
estando em dia com as parcelas do financiamento do possante anterior,
freqüentam-se eventos pomposos de entradas caríssimas no afã de tanger o
ostracismo social e, o melhor, a ida a restaurantes caros e aos badalados bares
e pubs da
moda serve muito mais para se manter socialmente vivo e em evidência do que
para se alimentar ou se confraternizar com os amigos. Mas há um motivo para
tudo isso, afinal, abrir mão de ostentações de toda espécie levaria fatalmente
ao que é considerado o pior e mais cruel dos julgamentos: especulações
inconvenientes sobre a situação financeira do ilustre ausente do show de
Roberto Carlos no Teatro Riachuelo ou dos jantares no Abade.
As estatísticas
depõem favoravelmente à tese de que, de fato, satisfaz a lascívia do natalense
mostrar a terceiros que é algo que está estratosfericamente longe de ser. Aqui,
por exemplo, segundo o jornalista Mario Barreto em entrevista à revista
Palumbo, compra-se mais Land
Rovers que em Salvador, mesmo esta sendo a maior capital do
nordeste – além de, naturalmente, ser uma cidade consideravelmente mais rica
que Natal. No mesmo passo, os índices de inadimplência em nossa cidade quanto
ao financiamento de veículos possui o mesmo viés estratosférico acima relatado.
“Viver bem” – esta infame expressão que em nossas terras é deturpada pela eiva
dissimulada do “querer ser”- às margens do Potengi é termo ornado de
penduricalhos fúteis e patéticos. Tanto é que viver propriamente bem,
satisfatoriamente feliz e confortável, mas sem seguir à risca essa supérflua
cartilha comportamental, confronta diretamente a peculiar conceituação que aqui
é dada a uma vida presumivelmente boa, mas simples e alheia às dívidas,
símbolos e preocupações que alicerçam esse lamentável e irreal modus vivendi.
Dentre o caleidoscópio de ícones que condensam a tara do natalense por aparências, talvez o Carnatal – evento baiano realizado em terras potiguares – seja o maior deles. Aqui, o evento nutre um nível de obrigatoriedade semelhante ao dos alistamentos eleitoral e militar. Não participar do Carnatal, para alguns, não é apenas a mais escorreita heresia, mas o triste sinal da decadência de uma vida social condizente com as demandas expositivas da cidade. Chega-se a comprar suas vestimentas-ingressos antes mesmo de pagar a mensalidade da escola dos filhos e a conta de luz. Um caso ímpar onde estudar e não ficar nas trevas são rebaixados à condição de meras necessidades de segunda categoria.
Conforme dito, na
nossa cidade a maior necessidade não é estar financeira, social e
profissionalmente bem, e sim parecer estar. Não tornar públicas as aparências é
corpo sem alma, razão sem sentido, praia sem sol. A tese machadiana das duas
almas nos leva a crer que a sanha por aparências parece, pelo visto,
representar perfeitamente a alma externa do natalense. Uma lamentável munição para
aqueles que nos taxam de província.
Nenhum comentário:
Postar um comentário