Diagnosticar que o racismo que existe no Brasil se manifesta comumente de forma velada já virou um chavão sociológico dos mais notáveis. Mas o lamentável é que tal notoriedade decorra exatamente das incontestes evidências de uma enraizada cultura segregacionista existente no Brasil, país cuja mestiçagem é um dos seus símbolos maiores. A simples tonalidade epidérmica parece, ainda hoje, ser a mais evidente credencial em uma sociedade cujas aspirações de ascender à Casa Grande – e consequentemente ‘embranquecer’ - ainda fazem parte dos planos de um naco considerável do imaginário comum. Há uma estranha espécie de determinismo sócio-biológico, onde a concentração de melanina na pele é, de maneira geral, inversamente proporcional ao prestígio social e às possibilidades de ascensão e reconhecimento.
Tal racismo velado se manifesta de diversas formas. Algumas doses de inocente condescendência podem levar à conclusão de que a maioria seja involuntária; brancos, educados por brancos, crescidos entre seus semelhantes brancos, servidos por garçons negros e pardos e criados por empregadas também não-brancas possuem, de fato, uma tendência natural e involuntária para enxergar em todo não-branco um potencial trabalhador subalterno - quando não o confundem com potenciais meliantes. Trata-se de uma construção puramente social. Uma espécie de senso comum não assumido – afinal, quase ninguém se reconhece preconceituoso - que alimenta uma herança cultural racista que faz a sociedade, incluindo os não-brancos, enxergar trabalhadoras negras ainda como mucamas. Quando atrelado ao padrão estético eurocêntrico, a coisa piora, pois enseja o nascimento de comportamentos, ações, palavras e expressões racistas que, por mais que absurdos, são plenamente ignorados, e o melhor (ou pior): costumam sair de pessoas extremamente convictas de que não alimentam nenhum preconceito racial.
As expressões e as palavras são soldados de primeira linha do racismo velado e – sim, vamos trabalhar com essa hipótese – inconsciente. Manifestações reflexas de um preconceito pretensamente involuntário, não são nada sutis ao demonstrar qual a verdadeira opinião da sociedade branca (e, mais uma vez, até da não-branca) sobre aqueles de pele mais escura. Exemplos não faltam contra aqueles que Lima Barreto designou como de origem javanesa na excelente sátira Os Bruzundangas. Em determinado trecho da obra, são narrados os inconvenientes do ministro Pancome em, através de concurso, selecionar diplomatas não-mestiços: Não queria que a cousa [o êxito de mestiços nas provas] se repetisse e estudava o modo de, evitando o concurso, encontrar um candidato bonito, bem bonito, não sendo em nada javanês, que pudesse oferecer aos olhares do ministro da Coréia ou do Afeganistão um belo exemplar da beleza masculina da Bruzundanga.
As referências etnocêntricas e preconceituosas são inúmeras, como aquelas geralmente feitas aos cabelos crespos. O cabelo pixaim, traço estético marcante e característico das raízes afros, é comumente caracterizado como “cabelo ruim”. Óbvio, pois trata-se de um padrão oposto ao dos cabelos lisos, estirados. Se há beleza além das chapinhas, ela é ignorada e desprezada pela maioria das mulheres que, impregnadas por concepções que não correspondem à realidade brasileira, a elas sucumbem sem qualquer resistência e senso crítico. Quantas mulheres negam sua identidade ao recorrer a meios artificiais para se adequar a esse padrão estético? Em outras palavras, quantas mulheres renegam seus cabelos crespos e ondulados e lançam mão da chapinha para expurgar de suas cabeças essa maldita e indesejável manifestação fenotípica de origem africana? O pejorativamente chamado “cabelo de bucha” é rechaçado inclusive entre aquelas que deveriam ostentá-lo como orgulho étnico e cultural. Eduardo Galeano, autor de clássicos como “As veias abertas da América Latina” e “Futebol ao sol e à sombra”, em um artigo publicado na década de 90, afirmou que, ao folhear a revista norte-americana Ebony, publicação que se propõe a celebrar os triunfos da raça negra nos negócios, na política, na carreira militar, nos espetáculos, na moda e nos esportes, contou 182 fotografias de modelos negras. Dessas 180, apenas 12 ostentavam o pixaim afro. As demais, todas de cabelos alisados. Mas a grande e triste ironia se encontra no fato de que a maioria de seus anúncios se dedicava a propagandear produtos alisadores. Um deles, vejam vocês, chamado African Pride (orgulho africano), promete “suavizar e esticar como nenhum.” Não quero nem trazer o exemplo daquelas que aproveitam para fazer algo que parece já ter se tornado um verdadeiro fetiche escandinavo: pintar seus cabelos de loiro.
O rol de expressões e atitudes racistas do nosso dia-a-dia é constrangedoramente vasto. “Fedendo a negro”, por exemplo, é expressão designada àquele sujeito que está cheirando mal. Ao falar alguma coisa ou fazer algo que merece desaprovação, o agente é cotidianamente referido como “nego” ou “neguinho”: “aí vem neguinho falar um monte de m...” ou “o que teve de nego correndo da polícia não foi brincadeira!”. Falando em polícia, essa costuma reproduzir religiosamente as concepções racistas da sociedade em seu modus operandi, situações que se agravam por serem protagonizadas por agentes estatais, operadores de segurança pública e supostos zeladores da ordem e da paz coletiva. Não é de hoje que os policiais trabalham com um arquétipo preconceituoso em suas abordagens e operações, desumanizando aqueles que nele se enquadram. O jovem pobre, negro e morador de áreas periféricas, por exemplo, é em regra visto como um potencial delinquente e costuma ser sumariamente tratado como tal. Suas residências e de seus familiares são violadas por operações policiais a qualquer hora – inclusive à noite - e sem mandado judicial, sendo extorquidos e abusados por servidores que, em que pese terem o dever de protegê-los, veem na sua condição sócio-econômica e na cor de sua pele a oportunidade de satisfazer sua lascívia autoritária ao desrespeitar uma legalidade que o Estado, vejam vocês, os incumbiu exatamente de zelar. A abordagem em blitz de trânsito é da mesma forma é realizada muito mais em negros do que em brancos, consequências de um preconceito alçado ao nível institucional.
Também como elementos mantenedores do status quo racista estão as piadas e anedotas envolvendo negros. Propalados também de forma inocente, dizeres como “negro quando não caga na entrada, caga na saída” ou que o cavaquinho é pequeno para que negros possam tocar usando algemas podem, a princípio, não representar nada de substancial, afinal, são apenas “tiraçõezinhas de onda”. A verdade, no entanto, é que constituem pequenas britas colocadas na argamassa do invisível muro do preconceito, que não é visto exatamente pelo fato de estar coberto pelo jocoso manto de um racismo supostamente humorístico cujos tecidos são, tão somente, costurados pela incisiva, secular e indiscreta agulha da discriminação e da ignorância.
A nossa sociedade, mestiça em sua gênese, não atingiu um nível de sensibilidade e consciência a ponto de perceber que é exatamente das inocentes involuntariedades como as acima enumeradas que se perpetuam os odiosos estereótipos preconceituosos que ainda hoje permanecem impávidos no inconsciente de uma coletividade que, bombardeada pela estética eurocêntrica, se olha no espelho e ainda sente vergonha. O embranquecimento social, visto como sinal de progresso, não passa da mais abjeta involução, involução que fere de morte aquilo que é quiçá o maior responsável pelo tão capitalizado e viçoso fascínio de nossas terras: o caleidoscópio étnico e cultural que, segundo o saudoso mestre Darcy Ribeiro, nos tornou a mais ímpar e fascinante nação do planeta.
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