"Não havia lei, nem mesmo implícita, contra frequentar o Café Castanheira, mas ainda assim o lugar era de maus presságios".
domingo, 1 de abril de 2012
Tora-réia
quinta-feira, 29 de março de 2012
Da necessidade efetiva de um estado laico
domingo, 18 de março de 2012
Natal, terra das aparências
Dentre o caleidoscópio de ícones que condensam a tara do natalense por aparências, talvez o Carnatal – evento baiano realizado em terras potiguares – seja o maior deles. Aqui, o evento nutre um nível de obrigatoriedade semelhante ao dos alistamentos eleitoral e militar. Não participar do Carnatal, para alguns, não é apenas a mais escorreita heresia, mas o triste sinal da decadência de uma vida social condizente com as demandas expositivas da cidade. Chega-se a comprar suas vestimentas-ingressos antes mesmo de pagar a mensalidade da escola dos filhos e a conta de luz. Um caso ímpar onde estudar e não ficar nas trevas são rebaixados à condição de meras necessidades de segunda categoria.
quarta-feira, 14 de março de 2012
Festa da democracia?
Artigo originalmente publicado no Observatório da Imprensa, no Diário de Natal e na Carta Potiguar.
Festa da democracia?
Dos grandes clichês conceituais e televisivos que costumam brotar na safra dos períodos eleitorais, nenhum deles supera o mantra mecânico, repetitivo e enfadonho da festa da democracia. Tão espontâneo quanto os artificializados ambientes assépticos telejornalísticos dos quais é diuturnamente entoado, a pecha de festa da democracia, no que tange às eleições, é termo que sai das chaminés da grande mídia e paira como nuvem sobre as cabeças dos cidadãos-eleitores, fazendo com que criem a consciência de que, naquele momento em especial, estão a honrar as inúmeras cabeças guilhotinadas no heróico sacrifício histórico em favor da democracia.
É exatamente aí onde está o problema.
A consciência cívico-democrática exalada das chaminés acima referidas funciona muito mais que um vesperal lampejo de cidadania. Como fumaça, serve também para criar uma névoa que impede o cidadão de enxergar o real significado que subjaz aos seus verdadeiros conceitos, tornando nebulosa a possibilidade de compreendê-los em seu sentido mais completo e consentâneo com o que de fato representam.
Para a grande mídia, a festa da democracia se resume ao momento do voto: locomover-se fisicamente até a respectiva seção eleitoral e escolher os seus representantes. Ponto. A entonação jubilosa com que seus âncoras a anunciam reforça esse ponto de vista. Eis do que trata o triunfo máximo da cidadania; o momento de ser cidadão é o momento de votar, ápice do regime democrático. Mais farisaico, impossível.
O exercício constante dos valores democráticos
Por alguma razão, reduzem sobremaneira o real significado da cidadania ao festejá-la apenas quando das eleições municipais, estaduais e para Presidência da República. Tal cantilena, mecânica e repetitivamente propagada, fere de morte o seu real significado. A festa a que se referem é evento que é – ou deveria ser – perene, pois, diferentemente do que traz implícito esse discurso, a cidadania não se exaure no voto. Muito menos o exercício da democracia. O cidadão é cidadão permanentemente, não bienal ou quadrienalmente. É por tal característica que a democracia e a cidadania devem ser exercidas de forma tão natural e constante quanto os nossos movimentos respiratórios.
Não se festeja a democracia, então, apenas quando das eleições. Festeja-se também quando fazemos valer dos poderes fiscalizadores que a Constituição nos concede como dádiva tão importante e representativa do regime democrático e republicano quanto o próprio voto; festeja-se quando exigimos que aqueles a quem elegemos correspondam com a expectativa e confiança neles depositadas; e festeja-se até no simples ato de, por iniciativa própria, pesquisarmos nos sites oficiais de nossos poderes acerca da atuação e produção legislativa de nossos representantes. Atos possíveis de serem realizados apenas em um regime republicano e que também compõem o conceito contemporâneo de democracia de forma tão umbilical quanto o próprio voto. Contudo, não lhes é dado o espaço que merecem no seio das campanhas televisivas e tampouco lhes são conferidas razões para quaisquer festejos – isso apesar de, diferentemente do voto, ser possível realizá-los a qualquer hora.
O conceito de democracia – nunca é demais repetir – é veiculado pelos tubarões da mídia nativa não apenas de forma caolha, mas míope do olho que lhe resta. Ao festivo povo brasileiro, a festa da democracia tem suas fronteiras convenientemente cingidas ao voto, voto este que, apesar de elemento da cidadania, não deve com ela se confundir. Sua essência, como mostrado, vai muito além do sufrágio. Muito além.
Ao que parece, figura-se totalmente fora de cogitação esperar dos grandes meios de comunicação uma maciça campanha cívica extra-eleitoral de forma a fomentar a consciência da constante necessidade de exercício dos valores democráticos. Afinal, ninguém se submeteria à espada de Dâmocles de forma tão gratuitamente ingênua.
domingo, 11 de março de 2012
Os diletantes e o ensino superior
Publiquei este artigo na edição de 8 de setembro de 2010 do Diário de Natal. Também foi publicado na Carta Potiguar e acredito que em uma edição antiga de "O Amaro", jornal do Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti.
Dei uma ajeitada antes de postar aqui (apesar das inúmeras que fiz antes de publicar nestes veículos). Tenho que concordar com Clarice quando ela - supostamente - disse: "Quando releio o que escrevo, tenho a impressão que estou engolindo o meu próprio vômito".
Os diletantes e o ensino superior
O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) classificou como "diletantes" aqueles que, com amor vocacional e alegria, exercem determinada arte ou ciência, escolhendo suas áreas de capacitação acadêmico/profissional em virtude da primordial identificação que nutre para com as funções a elas inerentes. O diletante encontra no seu cotidiano profissional a mais pura complementação do seu ser, realizando-se profissionalmente por exercer uma atividade que lhe proporciona a satisfação de estar convicto que, de fato, nasceu para fazer aquilo.
Os diletantes se subsumem a todo e qualquer ofício ou profissão. A realização profissional a qual acima se fez menção não raro possui umbilical elo com a causa e o efeito de seus atos enquanto profissionais. O diletante farmacêutico, por exemplo, é aquele que se realiza profissionalmente ao manipular substâncias químicas cujo escopo é a cura de alguma enfermidade naqueles que procuram os seus préstimos. O diletante engenheiro enche-se de regozijo ao ver a materialização de uma obra cuja construção foi por ele executada, idealizada e capitaneada, ciente de que dela usufruirão famílias, homens e mulheres. Ao diletante médico, não há satisfação profissional maior do que salvar uma vida, seja realizando uma intervenção cirúrgica bem sucedida, seja observando o êxito de um tratamento por ele referendado. O diletante arquiteto vê a coroação do seu esforço no soerguimento de seus projetos, estruturas, formas e desenhos nascidos de sua criatividade e sensibilidade artística e funcional, vendo tomar forma o que no início não passara de rabiscos e cálculos em uma prancheta. O diletante jurista, por sua vez, vê-se realizado, em regra, ao observar o triunfo da justiça em casos concretos mediante a utilização prática de seus conhecimentos legais e doutrinários. Nessa mesma linha, o diletante jurista se realiza reflexamente ao também combater a injustiça que, nas palavras de Rui Barbosa, desanima o trabalho, a honestidade e o bem.
Obviamente, não é a diletância sozinha que irá pôr comida nos pratos dos românticos diletantes. A compensação pecuniária pelo trabalho realizado é, natural e obviamente, indispensável ao desenvolvimento e reconhecimento de seus esforços, não raro sendo o efeito natural de um labor realizado com amor, esforço e sobretudo vocação.
Os diletantes, entretanto, aparentam estar cada vez mais escassos em tempos atuais de desvairada capitalização do ensino, de supervalorização do status social e de supremacia das aparências. A consagração pela sociedade da cega e ensandecida cultura da busca pelo dinheiro e sua elevação à alçada de único requisito na escolha das profissões vem diminuindo em progressão geométrica os que se alicerçam primordialmente em suas naturais propensões vocacionais. Evocando a máxima popular, a tendência é que se permaneça apenas o útil, dissolvendo-se cada vez mais do agradável.
Ao que parece, a época em que a vocação era a regente-mor das escolhas profissionais vem se tornando com assombrosa velocidade um passado cada vez mais remoto. Hoje em dia é comum o desprezo à formação acadêmica voltada à construção de um profissional com sólidas bases éticas, filosóficas e sociológicas simplesmente pelo fato de delas não ser possível, segundo o senso comum, extrair dividendos financeiros. Disciplinas propedêuticas, em que pese sua salutar importância para a lapidação da personalidade profissional dos discentes, são muitas vezes relegadas ao segundo plano por não caírem em concursos. O modus operandi dos professores - que muito comumente nada correspondem ao conceito paulofreiriano de educadores - vem sendo regularmente pautados no mais cabal tecnicismo, total e completamente incongruentes com a razão de ser do ensino universitário, mas consentâneos com a lógica de que são necessários e suficientes para os estudantes conseguirem um cargo público como se as cadeiras da universidade existissem exclusivamente para este fim.
Diversos atores da comunidade acadêmica vem fechando os olhos para o trabalho de conscientização acerca da função social da educação superior, faceta indelével do ensino universitário. A concepção atual da nossa classe média - ainda maioria nas cadeiras tanto do ensino superior público como do privado - vem reduzindo o ensino acadêmico a um mero trampolim para a ascensão social, pactuando professores e alunos com um sistema que sobreleva todo e qualquer aspecto, conhecimento ou disciplina que não possam ser, de acordo com os conceitos atuais, revertidos em pecúnia. O ensino técnico e frio, nesse contexto, passa a ser muito mais valorizado que o ensino tradicional, que visa formar profissionais socialmente sensíveis e cientes das suas responsabilidades para com a coletividade.
Frise-se que a patrimonialização como fim do aprendizado não é algo a ser rechaçado. Muito pelo contrário, pois ninguém espera que o esforço e reconhecimento do seu trabalho e do seu estudo não sejam reconhecidos através de um equivalente financeiro com eles condizente e que lhe confira um mínimo de conforto, dignidade e se possível algo mais que isso. Ao menos que seja observada como a única finalidade da academia, fazendo-se perder o tradicional conceito político-pedagógico do ensino acadêmico enquanto precípuo formador de um cidadão ciente de sua responsabilidade social, tal patrimonialização não deve ser encarada com um olhar de censura. Aqueles, por sua vez, que a utilizam como critério único de suas escolhas profissionais, encontrar-se-ão mais suscetíveis de não se realizarem profissionalmente e restarem frustrados por não trabalharem com aquilo que melhor se identificam, vez que não encontram a mesma satisfação que os mencionados diletantes encontram em sua rotina de trabalho.
Por óbvio, os diletantes também precisam comer, mas se diferenciam dos demais por ter apenas não seus estômagos abastecidos em função dos seus ofícios, mas também as suas almas.